domingo, 16 de outubro de 2011

Novo Código Florestal coloca meio ambiente em risco


A atual discussão sobre a reforma do Código Florestal, que tramita no Congresso Nacional, de relatoria do deputado federal Aldo Rebelo, nos remete à obra A insustentável leveza do Ser, publicada em 1984 e escrita por Milan Kundera. Com viés filosófico, o livro relata um romance que se passa na cidade de Praga em 1968. Apresenta a dialética existente entre a leveza e o peso, com fundamento na filosofia de Parmênides, identificando as dualidades ontológicas do Ser.
O livro nos traz a ideia de que a leveza retira o próprio sentido da vida, enquanto que o peso do comprometimento determina, para a vida, uma razão de ser, construída sob uma perspectiva existencialista. Há um trecho da obra que retrata o pensamento filosófico, por meio de uma metáfora de inspiração romântica e nítido caráter amoroso, a saber[1]:
O mais pesado dos fardos nos esmaga, nos faz dobrar sob ele, nos esmaga contra o chão. Na poesia amorosa de todos os séculos, porém, a mulher deseja receber o peso do corpo masculino. O fardo mais pesado é, portanto, ao mesmo tempo a imagem da mais intensa realização vital. Quanto mais pesado o fardo, mais próxima da terra está nossa vida, e mais ela é real e verdadeira. Por outro lado, a ausência total de fardo faz com que ele voe, se distancie da terra, do ser terrestre, faz com que ele se torne semirreal, que seus movimentos sejam tão livres quanto insignificantes.
A proteção jurídica do meio ambiente é uma decorrência natural da preservação do direito à vida digna, por se tratar de bem essencial à sadia qualidade de vida. Dessa forma, não se exige um grande esforço hermenêutico para perceber que a própria vida humana somente será garantida em um meio ambiente ecologicamente equilibrado, devendo esse ser considerado um direito fundamental. A primeira manifestação se deu, em 1972, por meio da Declaração de Estocolmo, elaborada na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, mais especificamente pelo seu princípio[2]:
O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequada em um meio, cuja qualidade lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar, e tem a solene obrigação de proteger e melhorar esse meio para as gerações futuras e presentes.
Em consonância com a filosofia de Parmênides, a dimensão ética, social e jurídica da proteção do meio ambiente alcançada, nos dias atuais, pela comunidade internacional demonstra que o desenvolvimento sustentável pressupõe o peso da responsabilidade da geração atual de utilizar os recursos naturais para o seu próprio desenvolvimento, consciente de que é necessária a preservação desses para as futuras gerações, sob pena de se tornarem escassos.
A definição mais utilizada para definir o desenvolvimento sustentável restou consignada no Relatório Brundtland, documento intitulado Nosso Futuro Comum - Our Common Future, publicado em 1987 perante a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, criada pela Organização das Nações Unidas (ONU). Confira-se[3]:
O desenvolvimento que procura satisfazer as necessidades da geração atual, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazerem as suas próprias necessidades, significa possibilitar que as pessoas, agora e no futuro, atinjam um nível satisfatório de desenvolvimento social e econômico e de realização humana e cultural, fazendo, ao mesmo tempo, um uso razoável dos recursos da terra e preservando as espécies e os habitats naturais.
O princípio do desenvolvimento sustentável encontra-se previsto, implicitamente, no ordenamento jurídico pátrio no artigo 225, caput, da Constituição Federal de 1988. Veja-se:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
Em 1992, foi elaborada a declaração Rio/92, durante a Conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente e o desenvolvimento realizada no Rio de Janeiro. A referida declaração reafirmou princípios da declaração de Estocolmo e introduziu outros sobre o desenvolvimento sustentável, como por exemplo, o princípio de nº 4, a saber[4]: "Para alcançar o desenvolvimento sustentável, a proteção do meio ambiente deve constituir parte integrante do processo de desenvolvimento e não pode ser considerada isoladamente em relação a ele".
Infere-se, pois, que a dignidade da pessoa humana só se torna possível com a consagração de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, a ser preservado para as atuais e subsequentes gerações, o que pressupõe a sedimentação do princípio do desenvolvimento sustentável. Surge daí a necessidade de se compatibilizar a atuação da economia com o uso adequado, racional e responsável dos recursos naturais, preservando-os para as gerações futuras. Nesse sentido, a Suprema Corte teve a oportunidade de se manifestar sobre a questão, em recente julgado da lavra do ministro Celso de Mello[5], que ressaltou o entendimento de que:
O princípio do desenvolvimento sustentável, além de impregnado de caráter eminentemente constitucional, encontra suporte legitimador em compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro e representa fator de obtenção do justo equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia, subordinada, no entanto, a invocação desse postulado, quando ocorrente situação de conflito entre valores constitucionais relevantes, a uma condição inafastável, cuja observância não comprometa nem esvazie o conteúdo essencial de um dos mais significativos direitos fundamentais: o direito à preservação do meio ambiente, que traduz bem de uso comum da generalidade das pessoas, a ser resguardado em favor das presentes e futuras gerações.
Ocorre que a proposta de alteração do Código Florestal, amplamente apoiada pela bancada ruralista, prestigia o desenvolvimento econômico, sem considerar os efeitos nefastos ao meio ambiente advindos do processo produtivo. Adota uma visão progressista irresponsável e, por óbvio, insustentável, por colocar em risco a qualidade de vida da atual e das futuras gerações.
Em alusão ao pensamento filosófico da citada obra, apresenta-se uma proposta desprovida de conteúdo científico que se afasta da verdadeira essência e da própria razão de ser da tutela ambiental, isto é, da necessidade da proteção da dignidade da pessoa humana mediante o uso consciente da propriedade em conformidade com sua função social.
A reforma traz pretensões que caminham em sentido contrário à evolução histórica do reconhecimento e da efetivação do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o que demonstra a inconsistência de uma postura que se mostra distante do estágio atual de conquista da proteção legal do meio ambiente alcançada pelo entendimento ético, social e jurídico da comunidade internacional.
Como se vê, há manifesta inconstitucionalidade nas pretendidas alterações do Código Florestal, especialmente no que se refere à redução dos limites de áreas de preservação ambiental (APPs), dispensa de reserva legal para propriedades de até quatro módulos fiscais e anistia a quem desmatou ilegalmente até julho de 2008, por ofensa aos princípios do desenvolvimento sustentável, da proibição do retrocesso social, bem como do postulado constitucional da função social da propriedade.
Ora, verifica-se que as normas legais que impõem a obrigatoriedade das reservas florestais e das matas ciliares têm contribuído para impedir o assoreamento de rios e erosão do solo, possibilitando um maior equilíbrio ecológico. Desta feita, pode-se afirmar, por exemplo, que a redução, para 7,5 metros, das matas ciliares nas margens de rios com até cinco metros de largura é prejudicial às áreas de preservação ambiental (APPs), que além de agirem na proteção dos rios, auxiliam a produtividade agrícola. É certo que se pequenos rios forem afetados, isso trará impactos nos médios e grandes rios.
Da mesma forma, haverá impacto ambiental negativo se for aprovada uma das propostas que deixa de considerar áreas com certo nível de declividade e os topos de morros como áreas de preservação permanente, sendo certo afirmar que novas tragédias causadas pelas chuvas no Brasil, como a que atingiu recentemente a região serrana do Rio de Janeiro, poderão vir a ocorrer com maior frequência, ocasionando danos irreparáveis à população.
Pois bem, o princípio da proibição da reversibilidade ou do retrocesso social visa impedir que o legislador adote novas posturas que demonstrem uma verdadeira regressão em relação ao avanço atual de proteção atingido pelo ordenamento jurídico.
O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito fundamental e, por essa razão, possui a prerrogativa da imutabilidade, consistente na limitação da autonomia do legislador quanto à restrição e extinção de normas de concretização de direitos fundamentais até mesmo por meio de emenda constitucional, por se tratar de cláusula pétrea, nos termos do artigo 60, parágrafo 4º, da Constituição Federal.
Nessa esteira, a abrangência do princípio da proibição do retrocesso social é suficiente, por si só, para demonstrar a amplitude da proteção do meio ambiente nas palavras de Molinaro[6]:
O princípio de proibição da retrogradação socioambiental, como afirmamos, embora restrinja a afetação da liberdade parlamentar, praticada nos limites do mínimo, remanescendo-lhe o excedente, no entanto, agora veda-lhe o poder de desconstituição, mesmo do excedente, desde que já consolidado.
A propósito, a colenda Corte Superior de Justiça, consubstanciando o entendimento de que o meio ambiente é um direito inalienável da pessoa humana, já teve oportunidade de afirmar o princípio da proibição do retrocesso social. Sobre a tema, veja a sábia lição do Ministro Herman Benjamin[7], no sentido de que:
O relaxamento, pela via legislativa, das restrições urbanístico-ambientais convencionais, permitido na esteira do ius variandi de que é titular o Poder Público, demanda, por ser absolutamente fora do comum, ampla e forte motivação lastreada em clamoroso interesse público, postura incompatível com a submissão do Administrador a necessidades casuísticas de momento, interesses especulativos ou vantagens comerciais dos agentes econômicos. O exercício do ius variandi, para flexibilizar restrições urbanístico-ambientais contratuais, haverá de respeitar o ato jurídico perfeito e o licenciamento do empreendimento, pressuposto geral que, no Direito Urbanístico, como no Direito Ambiental, é decorrência da crescente escassez de espaços verdes e dilapidação da qualidade de vida nas cidades. Por isso mesmo, submete-se ao princípio da não-regressão (ou, por outra terminologia, princípio da proibição de retrocesso), garantia de que os avanços urbanístico-ambientais conquistados no passado não serão diluídos, destruídos ou negados pela geração atual ou pelas seguintes.
Dessa forma, a manutenção das áreas territoriais especialmente protegidas pelo atual Código Florestal é medida indispensável à efetividade do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. E tudo isso pressupõe uma atitude consciente dos cidadãos mediante a compreensão de que a existência do próprio homem depende única e exclusivamente da adoção de uma postura responsável dotada de comprometimento quanto à preservação do meio ambiente, refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a sua insustentável leveza.

[1] Kundera, Milan. A insustentável leveza do ser, editora Nova Fronteira, tradução Tereza B. Carvalho, Rio de Janeiro, 1985.
[2] http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/doc/estoc72.htm
[4] guilhardes.files.wordpress.com/2008/07/principios-da-rio-92.ppt
[5] ADI 3540 MC/DF, Tribunal Pleno, de relatoria do Ministro Celso de Mello, publicado em 02/03/2006
[6] Molinaro, Carlos Alberto. Direito Ambiental – Proibição de Retrocesso. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 114.
[7] REsp 302906/SP,de relatoria do Ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, publicado em 01/12/2010
Ricardo Emílio Pereira Salviano é defensor público federal, titular do Ofício de Direitos Humanos e Tutela Coletiva no Distrito Federal.

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